terça-feira, 3 de junho de 2008


Errante

Meu coração da cor dos rubros vinhos

Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.
Meu coração o místico profeta,

O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura…
Meu coração não chega lá decerto…

Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto…
Eu tecerei uns sonhos irreais…

Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!

(Florbela Espanca)



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PERDIDAMENTE

"Eu quero amar,
Amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... Além...
Mais este e aquele, o outro e a toda gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém! Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi para cantar.
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que eu saiba me perder...
Para me encontrar..."

(Florbela Espanca)


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POETAS

Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.
Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!
Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender por poetas
E eu arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma para sentir
A dos poetas também!

(Florbela Espanca)


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"O meu mundo não é como o dos outros,
Quero demais, exijo demais,
Há em mim uma sede de infinito
Uma angústia constante que nem eu mesma compreendo,
Pois estou longe de ser uma pessimista;
Sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada.
Uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade...
Sei lá de quê!"

(Florbela Espanca)


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Desejo

Quero-te ao pé de mim na hora de morrer.
Quero, ao partir, levar-te, todo suavidade,
Ó doce olhar de sonho, ó vida dum viver
Amortalhado sempre à luz duma saudade!
Quero-te junto a mim quando o meu rosto branco

Se ungir da palidez sinistra do não ser,
E quero ainda, amor, no meu supremo arranco
Sentir junto ao meu seio teu coração bater!
Que seja a tua mão tão branda como a neve

Que feche o meu olhar numa carícia leve
Em doce perpassar de pétala de lis…
Que seja a tua boca rubra como o sangue

Que feche a minha boca, a minha boca exangue!
Ah, venha a morte já que eu morrerei feliz!…


(Florbela Espanca)



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"Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse a chorar isto que sinto!"

(Florbela Espanca)


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Os meus versos

Rasga esses versos que eu te fiz, amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!
Rasga-os na mente, se os souberes de cor,

Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!…
Tanto verso já disse o que eu sonhei!

Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente…
Rasgas os meus versos…

Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!…

(Florbela Espanca)

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